NOTA EM MEMÓRIA AOS 83 ANOS DA MORTE DE ANTONIO GRAMSCI

Nota em memória aos 83 anos da morte de Antonio Gramsci

Gianni Fresu, presidente da IGS Brasil, na data que se completa 83 anos de morte de Antonio Gramsci, exalta esses 83 anos com Gramsci em uma nota que reflete sobre o valor do seu legado nesse mundo pandêmico e terrível de hoje.

27 de abril 2020

83 anos com Gramsci

 

“Assim, a luta política se torna uma série de fatos pessoais entre aqueles que sabem muito sobre isso, tendo o diabo em uma ampola, e aqueles que estão presos aos enganos de seus próprios dirigentes e não logram convencê-los de sua ignorância incurável”.

(A. Gramsci, Cadernos do Cárcere, Einaudi, Torino, 1977, pag. 1597)

 

O aniversário do falecimento de Antonio Gramsci acontece no meio de uma gravíssima crise sanitária e política que atingem o Brasil e o mundo todo, em que tanto a vida das pessoas quanto as liberdades democráticas estão em perigo diante das constantes tensões entres os poderes do Estado e das recorrentes tentações autoritárias que permeiam parte significativa das classes dirigentes e da sociedade brasileira. Perante tudo isso, o legado do pensamento de Gramsci é uma ferramenta conceitual fundamental, porque fornece categorias e chaves de leituras úteis a esclarecer as contradições históricas e contemporâneas. Todavia, esse patrimônio teórico torna-se vivo e estritamente entrelaçado com a realidade contemporânea não apenas pelas suas heranças, mas graças ao trabalho de pesquisa que envolve em todo o País centenas de estudiosos, grupos de estudos, organizações sociais e culturais que localizam na obra de Gramsci as intuições intelectuais úteis não apenas a interpretar o mundo, mas a mudá-lo.

O sucesso internacional da obra de Antonio Gramsci é um fato notório, sendo ele (junto com Dante Alighieri e Niccolò Machiavelli) o autor italiano mais traduzido e estudado no mundo. Uma das razões do interesse científico para o pensamento Antonio Gramsci no panorama internacional se explica com atenção que esse autor dedicou ao estudo do momento da direção cultural na definição dos aparelhos de poder de uma sociedade moderna. Na realidade contemporânea, marcada pela onipresença dos meios de comunicação de massa e dos novos veículos de difusão das informações (internet e socialnetwork), ainda mais invasivos que os tradicionais, a importância dos organismos encarregados de formar a opinião pública é inquestionável. Além das campanhas eleitorais, que se servem sempre mais dos instrumentos virtuais (WhatsApp, Facebook, Twitter), a luta para influenciar e orientar a opinião pública representa um dos mais importantes desafios da política. Gramsci tem o mérito histórico de ter esclarecido entre os primeiros, com profundidade e continuidade, quanto a centralização política e as relações de força de uma sociedade  moderna e desenvolvida se atuam mais sobre o plano hegemônico (aparelhos privados da sociedade civil) de quanto não aconteça na dimensão tradicional do domínio direto do Estado (direito, exército, magistratura).

Carlos Nelson Coutinho escreveu que a grande difusão internacional de Gramsci, e a importância da do seu legado nas mais diversas disciplinas das ciências humanas, confirma quanto a definição de Clássico se adapta perfeitamente à obra dele. Se em relação ao Príncipe de Machiavelli ou ao Leviatã do Thomas Hobbes podemos utilizar essa categoria em razão dos elementos de grande atualidade desses escritos, a obra de Gramsci é um Clássico porque ela nos fala de um mundo que na sua essência segue existindo ainda hoje[1].

No Brasil de hoje, dentro de uma conjuntura política marcada pelo refluxo democrático e por uma violenta ofensiva reacionária, onde as misturas entre velho e novo produzem fenômenos bizarros, o pensamento de Gramsci fica um recurso analítico fundamental. Exatamente por essa razão a direita ao poder elegeu o intelectual sardo como o símbolo de uma hegemonia diabólica que é preciso extirpar com qualquer meio. Essa atenção censória e autoritária contra as categorias gramscianas se explica justamente pelos seus conteúdos científicos e revolucionários, no sentido que elas despertam constantemente a necessidade de fundamentar qualquer perspectiva ontológica no conhecimento rigoroso do mundo concreto, evitando a retórica e a abstração das simples afirmações ideológicas. Um trabalho de pesquisa e elaboração teórica que pretende buscar os elementos reais, racionais e necessários da realidade visando à radical libertação das cadeias materiais e espirituais que impedem a integral emancipação do homem.

O Brasil atualmente é uma das realidades mais ativas nos estudos dedicados ao intelectual sardo em nível internacional. A biografia de Antonio Gramsci é marcada pelo drama da ditadura, não apenas pela privação da liberdade que o condenou a morrer em condições de constrição, mas porque o fracasso das instituições liberais e aquelas do movimento operário o empurraram a investigar as razões daquela derrota histórica. É exatamente a partir dessa aflição que nasceu um conjunto de reflexões problemáticas e complexas como os Cadernos do cárcere. Também nessa premissa encontramos, talvez, as razões do sucesso de Gramsci num País acostumado às viradas autoritárias e ao “subversivismo reacionário” como o Brasil, porque a atenção crescente para a sua obra se entrelaça estritamente à virada autoritária do Golpe de 1964, destinado a durar como o fascismo na Itália mais de duas décadas. Mas como o Tribunal especial fascista não conseguiu apagar o cérebro de Gramsci por vinte anos, da mesma forma a ditadura brasileira não pôde impedir o florescimento cársico dos estudos ao lado do seu legado teórico. Pelo contrário, para mais de uma geração de estudiosos, Gramsci tornou estímulo de resistência intelectual contra a brutalidade do regime e, ao mesmo tempo, um instrumento para decifrar as contradições sociais da modernização nacional brasileira, a sua história política, econômica e cultural. Isso produziu a riqueza e a originalidade dos estudos gramscianos no Brasil. O Brasil representa uma ponta avançada, não uma periferia, pela quantidade e a qualidade dos trabalhos dedicados ao pensador sardo. Aqui a atenção filológica para as categorias e as elaborações do intelectual sardo encontrou uma tradução criativa nas concretas condições da formação econômico-social nacionais. Um desenvolvimento coerente com o grande tema gramsciano da tradutibilidade e da “filologia vivente” no terreno real das lutas sociais e políticas brasileiras. Como coroamento desse longo processo de progressiva afirmação de estudo, difusão e contextualização do pensamento de Gramsci, entre 27 e 29 de maio de 2015, a assembleia constitutiva de Rio de Janeiro desembocou na criação do IGS Brasil com a tarefa de favorecer relações orgânicas entre os estudiosos ativos no País, para desenvolver as iniciativas cientificas, editoriais e culturais ligadas ao pensamento de Gramsci. Diante dessa história, o IGS Brasil, na Terceira Assembleia Nacional acontecida em Marília no setembro de 2019, assumiu solenemente a tarefa de valorizar a pluralidade das abordagens metodológicas e teóricas, oferecendo um quadro unitário, dialético às diferentes leituras e interpretações do pensamento de Gramsci. Com esses compromissos estamos empenhados em iniciativas cientificas, publicações, eventos nacionais e internacionais, atividades culturais e de divulgação para prosseguir essa grande tradição intelectual do Brasil.

Desde 27 de abril de 1937, o interesse por Gramsci vem crescendo, espalhando-se pelo mundo, invadindo campos temáticos e perturbando a estrita separação disciplinar das academias. Estudar Gramsci é importante não só por razões históricas, para entender o passado, mas também e sobretudo porque seu patrimônio intelectual nos fornece categorias e chaves interpretativas úteis para decifrar as enormes contradições do “mundo complicado e terrível” de hoje. Sua obra e sua vida são necessárias para não desistir, para nunca abandonar a ambição de transformar a realidade, não só de interpretá-la, dando finalmente carne e osso ao princípio da emancipação humana integral, erradicando assim da história o domínio do homem sobre o homem. Por estas razões, apesar da ausência física e apesar da vontade de Mussolini e seu regime de desativar seu pensamento, foram 83 anos com Gramsci.

 

Gianni Fresu

Presidente da International Gramsci Society Brasil

 

 

[1] C. N. Coutinho, Il pensiero politico di Gramsci, Unicopli, Milano, 2006, pag. 146.