Domenico Losurdo: luta filosófica e revolução entre as duas Restaurações

“Margem Esquerda”, Revista da Boitempo, n.31, II semestre 2018

O falecimento de Domenico Losurdo suscitou grande emoção no mundo filosófico e político em muitos países onde ele era não só apreciado e estudado, mas também recebido como um dos filósofos mais orgânicos, sistemáticos e coerentes do século XX e início deste novo século. Para mim, que tive a sorte de me formar com ele, foi não apenas um mestre, mas o ponto de referência intelectual por meio do qual pude estudar e compreender os grandes intérpretes do passado. Losurdo nasceu na região da Puglia em 14 de novembro de 1941 e graduou-se em 1963, orientado pelo historiador da filosofia e senador do PCI Pasquale Salvucci, com uma dissertação sobre Karl Rosenkranz. Foi professor e diretor do Istituto di Scienze Filosofiche e Pedagogiche “Pasquale Salvucci”, na  Università degli studi di Urbino, sendo presidente da associação hegeliana Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken.

No Brasil, Losurdo encontrou também um público de apaixonados. Seus livros foram e continuam sendo traduzidos e publicados com grande sucesso de vendas, e sua obra é objeto de estudo nas principais universidades brasileiras. As conferências e palestras que ele proferiu por toda parte nesse grande país (as últimas no fim do ano passado) sempre estiveram lotadas, sendo acompanhadas por jovens, estudiosos e leitores que, mesmo partidários de diferentes vertentes ideológicas, animavam debates e discussões que se estendiam para além do evento. Aquele que, no futuro, desejar escrever a primeira biografia intelectual desse pensador, irá assumir não apenas uma grande responsabilidade, mas uma carga de trabalho que não poderá ser cumprida apressadamente e com superficialidade, tamanha a profundidade e amplitude de sua produção teórica: dos clássicos da filosofia ao debate em torno da figura de Stálin; da análise do papel da China ao revisionismo histórico; do pensamento liberal às questões do bonapartismo e da democracia moderna; da história do pensamento ocidental aos problemas do colonialismo e do imperialismo. Os estudos de Losurdo sobre o materialismo histórico, assim como aqueles sobre Kant, Hegel, Heidegger e Nietzsche, são um marco fundamental na história das ideias e dos acontecimentos das sociedades humanas, tamanhas a sua seriedade científica e autonomia intelectual, sua riqueza problematizadora e complexidade interpretativa. Em tempos tão sombrios, dominados pelo refluxo democrático em âmbito internacional, sua batalha filosófica jamais se esqueceu de entrelaçar-se às exigências da política. Não obstante, a clareza de suas posições nunca se traduziu na apologia das convicções ideológicas que evocava, tampouco no abrandamento do rigor intelectual que lhe era característico. Pelo contrário, Losurdo sempre indagou com severidade crítica e sem indulgência os limites do universo filosófico-político em que decidira militar e ao qual dedicou todas as energias de sua vida.

Em sua vasta produção filosófica, Losurdo sublinhou a importância da filosofia de Hegel para compreender racionalmente a Revolução Francesa – como negação dialética da velha sociedade em agonia – e suas grandes heranças no devir da humanidade. Hegel soube reconhecer a história mundial como um processo unitário e dialético, no qual as transformações não são dominadas por inacessíveis leis divinas ou naturais, mas são a consequência do estrito entrelaçamento de contradições objetivas e subjetivas no mesmo corpo social. Assim, se os teóricos do pensamento conservador explicaram a Revolução Francesa por meio de categorias conceituais externas ao corpo social – como as teorias da conspiração ou aqueles que comparam a revolução às catástrofes naturais (terremoto, erupção, inundação) ou às epidemias – Hegel é o primeiro a fornecer um quadro conceitual histórico racional dos processos revolucionários[1].

Expliquei tudo isso porque se queremos abordar a obra de Losurdo é preciso primeiramente colocar a sua inteira crítica filosófica marxista no grande marco da tradição hegeliana, que se desenvolveu em meio ao duríssimo conflito entre revolução e restauração. Um ano depois do Congresso de Viena, Karl Ludwig von Haller – talvez o principal ponto de referência teórica da Restauração – escreveu sua obra mais conhecida, significativamente intitulada A Restauração da ciência política, com uma finalidade declarada: derrotar também no plano teórico as doutrinas revolucionarias já espancadas politicamente, porque, embora atropeladas, ele vislumbrava o risco de uma possível nova emergência e o difundir-se de uma nova infecção insurrecional[2].

Losurdo sempre levantou a necessidade de compreender os elos entre a primeira e a Segunda Restauração, mostrando a tarefa ideológica comum a elas: deslegitimar as duas maiores Revoluções da história mundial. Depois de 1815, a resistência filosófica que tentou explicar racionalmente as razões e as heranças da Revolução Francesa teve um significado que ia além da luta política imediata. Da mesma maneira, como Hegel fez no começo do século XIX, era preciso demonstrar as contradições e a instrumentalidade das teorias que apresentaram os acontecimentos de 1917 como a origem de todos os males e desastres. Um fio vermelho une Von Haller aos teóricos do revisionismo contemporâneo; assim, os lutos e os horrores de um século ensanguentado são o fruto envenenado da Revolução Russa, e mesmo o fascismo, segundo Nolte, não seria produto da história burguesa, a prossecução nos confins europeus da ideologia colonial, mas uma simples consequência do fanatismo ideológico bolchevique. A mesma crítica contra os jacobinos envolveu os bolcheviques, a idêntica condenação da Revolução Francesa abrangeu a Revolução de Outubro. A “queda do mito do Outubro bolchevique[3] desencadeou a crítica revisionista contra a Resistencia antifascista, a teoria do Imperialismo e a luta dos movimentos anticoloniais, encaminhando uma fase de refluxo democrático e ofensiva reacionária internacional ainda bem longe de acabar. No interior desta leitura apocalítica, que fez da história soviética um bizarro manual de teratologia, segundo Losurdo, se colocam as multíplices simplificações sobre as tentativas de transição do feudalismo à modernidade industrial nos países do socialismo histórico. Não apenas no mundo liberal, mas também na esquerda, a principal acusação à Revolução de Outubro (“a sua traição”) ficaria na falta da extinção do Estado. Pelo contrário, o multiplicar-se de suas funções e atividades, necessárias a encaminhar esse inédito processo histórico, seria a causa da natureza autoritária do socialismo histórico. Nesse sentido, Slavoj Žižek, em seu último livro sobre Lênin, dedica muitas páginas à demonstração dos erros e dos horrores tanto do jacobinismo quanto do bolchevismo, duas tradições que, segundo ele, tinham em comum “a mesma histeria ideológica” e o igual “radicalismo igualitário”. Žižek declara a necessidade de problematizar o conceito de “totalitarismo”, afirmando que “o terror político” seria de pesquisar na subordinação política da esfera produtiva material, da qual a o bolchevismo negaria a autonomia[4].

Em sua obra, Losurdo mostra que na ideia de uma relação inversamente proporcional entre a esfera da liberdade e a extensão das atividades do Estado encontra-se um dos mais duradouros mitos do liberalismo, que tornam comum as concepções do “governo limitado” de John Locke e às teorias sobre o totalitarismo de Hannah Arendt e Žižek. A condenação preventiva ou póstuma à ambição de regulamentar a vida social, intervir na economia e fornecer um endereço social à vida de uma comunidade nacional está diretamente entrelaçada com a mais eficaz representação ideológica do pensamento liberal: a capacidade natural de autorregulamentação das leis do mercado (e o princípio da chamada “mão invisível), teoricamente não compatível com a artificial irrupção ordenadora da política. Trata-se de um problema filosófico, e não apenas político, que solicita a compreensão da grande lição hegeliana segundo a qual “a filosofia é o próprio tempo apreendido com o pensamento”[5]. Nesse sentido, Losurdo assumiu e desenvolveu um grande desafio filosófico, de não deixar o materialismo histórico na dimensão arqueológica da ciência política, resgatando a histórica aspiração de Marx: transformar o mundo, não apenas interpreta-lo; traduzir gramscianamente a filosofia na política, juntar teoria e pensamento, para conceber em formas orgânicas uma filosofia da práxis capaz, enquanto visão do mundo crítica e coerente, de disputar o terreno da luta hegemônica a fim de superar as relações de dominação do homem sobre o homem, que condenam a grande maioria da população mundial na miséria e na subalternidade social.

 

[1] Domenico Losurdo, L’ipocondria dell’impolitico. La critica di Hegel ieri e oggi (Milella, Lecce, 2001).

[2] Carl Ludwig von Haller, La Restaurazione della scienza politica (org. Mario Sancipriano, Turim, Utet, 1963, 3 v.), v. 1, p. 75.

[3] Domenico Losurdo, Guerra e revolução: o mundo um século após de 1917 (São Paulo, Boitempo, 2017), p. 15.

[4] Slavoj Žižek, Lenin Oggi (Milão, Ponte delle Grazie, 2017), p. 51.

[5] Georg W. F. Hegel, citado em Domenico Losurdo, O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer (São Paulo, Boitempo, 2018), p. 206.